Elsie Houston e os Cantos Populares do Brasil

 

Chants Populaires du Brésil | exemplar de Mário de Andrade (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP) nas mãos de Heloísa Etelvina e Danilo de Paulo

 

O disco “Goma-Laca: Cantos Populares do Brasil de Elsie Houston” foi criado a partir de 20 das 42 canções apresentadas por Elsie Houston no livro Chants Populaires du Brésil, de 1930. Até hoje inédita em português, a raridade foi localizada em três exemplares: Um deles pertenceu a José Ramos Tinhorão e está no acervo do Instituto Moreira Salles IMS-RJ. Outro, puro ouro, está no Instituto de Estudos Brasileiros (USP), com dedicatória de Elsie para seu “amigo e professor de estética” Mário de Andrade e tem reveladoras anotações à lápis do musicólogo-poeta. O terceiro, em versão digital, está disponível no site da Biblioteca Nacional da França (Gallica.Fr). / publicado originalmente em goma-laca.com

 

“Os Chants Populaires du Brésil.. revelam a atividade da ilustre artista cuja preocupação em aperfeiçoar seus dotes vocais não constituem o seu único objetivo. Com esse trabalho a Sra. Elsie Houston ingressa na lista dos pesquisadores que têm trabalhado por um melhor conhecimento sobre a inimitável música popular do nosso país e faz jus a muitos aplausos.”
(Diário de São Paulo, 05.06.1931)

 

Entre duas guerras mundiais, a França dos anos 20 passava por um luminoso período de trocas culturais e escutava, fascinada, a “exótica” música brasileira que chegava com o balé sinfônico “Boi no Telhado” de Darius Milhaud, Pixinguinha e os Oito Batutas, Villa-Lobos e as orquestras de Carlos Blasifera e Romeu Silva. Na fase de ouro da música brasileira na cena parisiense, lá estava Elsie Houston estreando obras de Villa-Lobos e cantando música popular com instrumentistas de seu país.

Elsie Houston já era bastante conhecida no universo acadêmico europeu como interlocutora de melodias tradicionais quando foi convidada a publicar o “Chants Populaires du Brésil”. O livro seria o primeiro fascículo de uma coleção da Biblioteca Musical do Museu da Palavra e do Gesto e do Museu Guimet editada pela “livraria orientalista” Paul Geuthner. A série dirigida pelo linguista Hubert Pernot e pelo musicólogo Philippe Stern e dedicada à “música dos países longínquos”, apresentava cantos de “terras desconhecidas no mapa-mundi musical” como Argentina, Grécia, “África do Norte”, Romênia, Etiópia e Bulgária, além de poemas do indiano Rabindranath Tagore.

Chants Populaires du Brésil é uma compilação de 42 temas musicais “recolhidos” por Elsie Houston. Em tempos de hegemonia do samba carioca, Elsie apresenta para o mundo uma paisagem sonora diversificada, com modinhas, lundus, emboladas, cocos e desafios. Além de revelar com notação musical gêneros escutados em diferentes regiões do país, ela indica as maneiras de se cantar, timbres, pronúncias e intenções. No prefácio, em que evoca o “mito das três raças” e as contribuições indígenas, africanas e europeias na formação da música na América Latina, Philippe Stern cita a precisão com que Elsie indica os mínimos acentos de cada canto e elogia o “timbre popular emocionante” de sua voz. 

Em 1928, antes de escrever o Chants, prepara o artigo La musique, la danse et les cérémonies populaires du Brésil para o Congresso de Arte Popular em Praga, que só foi publicado em 1931 no relatório oficial do evento. No artigo, que foi traduzido em português para o jornal antifascista O Homem Livre (SP), Elsie fala da necessidade de se entender a nossa “poranduba musical” e descreve gêneros como choro, embolada e “macumba”. Embora ecoasse certo preconceito daquela geração que ainda relacionava o candomblé à “feitiçaria” ou “baixa civilização”,  Elsie reconhecia nele uma manifestação de resistência e beleza em um país de dura repressão às práticas culturais e espirituais afrobrasileiras.

Em 1929, Elsie Houston e Benjamin Perét tinham o plano de viajar pelo Norte e Nordeste, e Villa-Lobos chega a escrever uma série de cartas de recomendação para o casal viajante em paradas por Manaus, Paraíba do Norte, Pernambuco e Bahia. Até hoje não se sabe com certeza qual foi o itinerário exato da viagem.

 

“Realizarei agora um dos maiores sonhos da minha vida. Vou ao Pará e ao Amazonas com o meu marido e, de lá, seguiremos pelo interior até o Mato Grosso, a fim de apanharmos flagrantes da vida dos índios, assunto que interessa extraordinariamente a civilização ocidental.”
(Elsie Houston, Correio da Manhã, 21.02.1929)

Nem todos os cantos apresentados por Elsie Houston foram escutados e anotados por ela em suas peregrinações musicais pelo Brasil. Referência para o estudo do folclore brasileiro, o livro de Elsie é recomendado por Mário de Andrade pelas “notações excelentemente bem cuidadas” apesar de algumas imprecisões: “várias das canções que aparecem na coletânea são compiladas de livros anteriores brasileiros e o processo de notação é a colheita não d’après nature, mas de pessoas eruditas que conheciam de cor as canções populares. E várias destas têm autor e são popularescas ou urbanas” .

Como poetou Murilo Mendes, Elsie cantava “as linhas mestiças do Brasil andando”. As melodias do Chants são fruto de leituras, viagens e principalmente uma poderosa rede social de amigos compositores, músicos e intelectuais que também estavam interessados em conhecer as melodias tradicionais do país. A proximidade com Luciano Gallet, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Jayme Ovalle, Hekel Tavares e Marcelo Tupinambá, todos em movimento por uma renovação musical brasileira a partir do “folclore”, certamente rendeu um farto intercâmbio de musicalidades. Por isso, a maioria das canções apresentadas neste disco pode ser reconhecida em obras como o ciclo de Canções Típicas Brasileiras de Villa-Lobos  (“Nozani-ná”, “Estrela do Céu”, “Xangô“), nos cadernos de Melodias Populares Brasileiras de Luciano Gallet (“Taieiras”,“Bambalelê”, “Fotorototó”, “A Perdiz Piou no Campo”, “Ai que coração”) e na vasta musicologia de Mário de Andrade (“Meu barco é veleiro”, “Passarinho Verde”, “Coco dendê trapiá”, “Xangô“).

Nesta rede de contribuições também estava a turma do Pixinguinha: Sebastião Cirino (“Espingarda”), Henrique Chaves (“Bem-te-vi”), o compositor alagoano Hekel Tavares e o amigo Tio Faustino, músico e babalorixá sempre citado por Elsie Houston. Também havia a turma de artistas do norte e nordeste que chegavam ao Rio de Janeiro provocando fascínio e revolução com novos ritmos e maneiras de tocar. No Chants, ecoam versos cantados por Stefana de Macedo, João Pernambuco, Xisto Bahia, Bahiano, Catulo da Paixão Cearense, Olga Praguer Coelho e, com destaque, Jararaca e os Turunas Pernambucanos, que a partir de 1922 tiveram seu repertório de cocos, desafios e emboladas rapidamente assimilados pela indústria do disco (“Passarinho Verde”, “Coco Dendê Trapiá”, “Espingarda Pa”).

No livro de Elsie também estão misteriosas informantes quase anônimas: a “cozinheira negra do Rio de Janeiro”, a “alagoana de nome Amélia”, a “cantora paraense”,  a “menininha do engenho no Rio Grande do Norte”. Mulheres cantantes silenciadas pela história, cuja inspiração ainda reverbera.

Publicado originalmente em www.goma-laca.com

 

PANORAMA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, POR ELSIE HOUSTON (1928)

No mesmo ano em que estreava em disco na França, em 1928 Elsie Houston foi convidada para apresentar um estudo sobre música brasileira no I Congresso de Artes Populares em Praga, promovido pelo Instituto de Cooperação Intelectual da Liga das Nações. Embora não tenha participado do congresso, seu artigo “La musique, la danse et les cérémonies populaires du Brésil” foi publicado nos Anais do Congresso em 1931. Entre musicólogos como Mário de Andrade, Luciano Gallet e Renato de Almeida que também teriam enviado material para o evento, a apresentação de Elsie foi a única selecionada para representar as artes populares do Brasil (TONI 2016).

O artigo, em que comenta sobre os gêneros musicais e danças do Brasil, foi traduzido para o português e publicado em 1933 no jornal anti-fascista O Homem Livre, fundado por Mário Pedrosa (cunhado de Elsie) e Geraldo Ferraz (que se tornaria marido da amiga Pagu). Interessada nos jeitos de cantar e rimar dos cantadores e cantadoras do Brasil, Elsie sabia que era impossível engaiolar na partitura as sutilezas inventivas da nossa música: “O melhor é ter isso no sangue”, dizia.

Na serie de artigos “Panorama da Música Popular Brasileira”, Elsie Houston busca identificar as origens indígenas, portuguesas e africanas da música popular brasileira, e antecipa o que será publicado anos mais tarde no livro “Chants Populaires du Brésil”, de 1930. Em linguagem “para francês entender” ela descreve gêneros musicais como a modinha, o coco, a embolada (rouler en boule), a chula, os lundus, jongos, cateretês, e o choro,  destacando aspectos típicos da nossa música como a síncopa e o improviso. Elsie também apresenta as chamadas “danças dramáticas” de festividades como o bumba-meu-boi, a congada, os pastoris e a nau catarineta. Ao final do artigo, Elsie Houston também dedica boa parte do seu pensamento à “Makumba” e a “Capoeiragem”, tentando estabelecer conexões entre orixás e entidades do catolicismo, e entre o legitimado samba e os proibidos batuques e capoeiras, denunciando a violenta repressão policial à essas práticas. A musicóloga encerra o texto deixando um apelo para que se passe a conhecer as musicalidades do nordeste do país, ampliando os horizontes da musicologia para além do samba e da modinha cariocas.

 

Reproduzimos aqui, a série de artigos em que o jornal O HOMEM LIVRE divulgou a tradução de “La musique, la danse et les cérémonies populaires du Brésil”, que Elsie teria apresentado para o Congresso de Artes Populares em Praga de 1928. Os artigos foram publicados nos dias 1, 14 e 22 de agosto de 1933.

 

PARA CHEGAR MAIS PERTO:

BERTEVELLI, Isabel C. Dias. Elsie Houston (1902-1943), cantora e pesquisadora brasileira. Diss. Dissertação Mestre em Artes. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São Paulo, 2000.

HOUSTON-PÉRET, Elsie. Chants Populaires du Brésil. Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1930.

_______________. Art populaire : travaux artistiques et scientifiques du 1er Congrès international des arts populaires, Prague, 1928, Paris, Éd. Duchartre, 1931.

SEIGEL, Micol. Sound Legacy, Elsie Houston. Inn: Radano, Ronald e Tejumola Olaniyan (org) Audible Empire: Music, Global Politics, Critique (Refiguring American Music), Duke University Press, 2016.

_______, Untranslatable Elsie Houston. Inn: Uneven Encounters, Making Race and Nation in Brazil and the United States.Duke University Press, 2009.

TONI. Flávia Camargo.  A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular em Praga 1928. Debates – Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música 17, 2016.

VERDURE. Nicolás. Les archives de l’enregistrement sonore à la Bibliothèque nationale de France », Vingtième Siècle. Revue d’histoire 2006/4 (no 92), p. 61-66.